23 de out. de 2016

GOTÍCULAS DE OUTONO

“Por que se suicidam as folhas
quando se sentem amarelas?”
(Pablo Neruda)

I
as árvores estão ficando cada vez mais nuas
enquanto eu visto cada vez mais roupas
cada folha que cai é um casaco a mais

II
descobri um espaço entre a luva e o casaco
chamado pulso
que é a pior coisa do mundo pra existir num lugar frio
dá vontade de cortar os pulsos

III
a paisagem começa a escorrer
como tinta fresca na chuva
agora só esse pássaro levanta uma gota de azul no céu

IV
começo a descobrir como se sente uma cebola
com seus infinitos casacos

- o que restará de mim ao fim do frio?


20 de set. de 2016

HOMELESS

quando seus melhores amigos
são dois cisnes brancos
que passam o dia na beira do lago
a se coçar com os bicos

quando de toda a água ainda líquida
você só consegue enxergar
o tanto de gelo que vai se formar

quando lamenta pelo jardim de flores
- tão bonito! -
à beira da morte

quando a própria paisagem se suicida
pelo excesso de pontes
que convida

quando você paquera vitrines de bikes
enquanto gasta a sola do mesmo tênis
todos os dias
passando pelas mesmas vitrines

quando o lugar mais bonito do mundo
é a tela do Skype
onde sua sobrinha sorri
nos colos em que você queria estar

quando você se sente tão envergonhada de incomodar
que queria dormir embaixo do sofá

quando a timidez cria um bloco de gelo intransponível
que um simples “oi” é um estilhaço
e toda palavra corta
na gagueira dos dias

e os dias se encurtam dia a dia
e as noites vão ficando cada vez maiores e mais frias

e seus melhores amigos
são aqueles 2 cisnes
que se coçam
largando as penas no gramado
enquanto você fuma um cigarro
todos os dias
na beira do lago

e o lago vai congelar
e os cigarros vão acabar
e os cisnes vão embora

e você não cabe embaixo do sofá
e você não consegue mergulhar na tela

e permanece parada em frente à mesma vitrine,
enquanto dezenas de bikes cruzam a rua às suas costas
com a determinação das coisas que sabem para onde vão

seus tênis já estão cansados de andar
sem conhecer o caminho de casa

e eu que não entendia por que os tênis se penduravam
nos fios de alta tensão


18 de jan. de 2016

Só amêndoas estouradas

Hoje não tem poesia no calçadão da praia.
Só amêndoas estouradas e poças d’água.
Nem choveu – claro!,
porque dessa vez eu levei guarda-chuva.
Ainda há pessoas que pegam onda nessas águas.
Eu nunca entendi as pessoas que pegam onda nessas águas.
Nem onda tem.
Só coliformes fecais.
Será que ainda existem os caçadores de mariscos
que emergiam entre as pedras?
Só vejo um punhado de conchas abertas.
Eu caminho como uma caçadora de tesouros.
Mas não há tesouros no calçadão da praia.
Só amêndoas estouradas.


SÉRIE: PAISAGENS URBANAS – PRAIA DE ICARAÍ II

17 de jan. de 2016

O céu de Hitchcock

Estou em um filme do Hitchcock
onde só há pombos e urubus
sobrevoando o céu.
A cidade matou os pássaros.
A Baía de Guanabara cospe catarro na areia de praia
e arrota podre.
Caminho tentando encontrar beleza,
mas só vejo paus de selfie,
carros, fios de alta tensão.
Pisoteio formigas desorientadas
e sigo de volta pra casa.
“As formigas nas mãos de Buñuel são mais belas”, penso.
Os pássaros de Hitchcock são mais belos.
A realidade fede.


SÉRIE: PAISAGENS URBANAS – PRAIA DE ICARAÍ I